A vida, tchê, é como um mate bem cevado: cheia de sabores que se alternam entre o amargo e o doce, lembrando-nos que tanto a alegria quanto o sofrimento são parte da mesma roda.
Assim como o poncho de um gaúcho precisa de costuras firmes para enfrentar os ventos do pampa, nossas emoções e escolhas precisam de atenção e cuidado, porque, no final, o que nos cobre é a história que tecemos com as mãos da alma.
Nessa lida, o que realmente importa nem sempre está à vista. Às vezes, a verdadeira riqueza não se encontra nas conquistas grandiosas, mas nos gestos pequenos e na simplicidade que passam despercebidos por quem não para pra olhar com o coração.
É como dizem por aqui: o silêncio fala mais que o barulho, e a paz vem quando vivemos sem precisar dar explicação pra ninguém, além de nós mesmos e do Grande Patrão lá de cima.
Histórias precisam ser contadas, mesmo que custem lágrimas, porque são elas que deixam um legado.
E legado, não é só o que se pode pegar nas mãos, mas o que se sente no peito: atitudes que inspiram, a coerência de quem faz o que diz, a solidariedade que abraça sem pedir nada em troca, e a paixão por uma cultura que atravessa gerações.
Hoje, quero trazer à memória um gaúcho que nos deixou cedo, vítima de um trágico acidente causado por condições climáticas adversas no dia de Nossa Senhora dos Navegantes, em 1999. Ele partiu enquanto fazia o que mais amava: dirigir e servir, voltando da posse de nosso representante na Assembleia Legislativa do Estado.
Sua breve passagem deixou marcas profundas por onde passou. Foi na pacata Linha Fátima, em Getúlio Vargas, que sua história começou a ser escrita, mas foi entre os anos 80 e 90 que seu nome ganhou força e ressoou com intensidade.
Na Vila do Povo Feliz e, depois, Flor da Serra do Sul, esse homem conquistou o respeito e o carinho de todos. Suas tradições eram tão ricas quanto às paisagens do nosso chão, e suas aventuras pelas estradas do Brasil, a bordo de seu caminhão, pareciam tiradas de um conto.
Já no campo, era inseparável de seu trator MF-65, com o qual fazia o trabalho pesado parecer poesia em movimento.
Era impossível não se emocionar ao cruzar o olhar com os fiéis companheiros de quatro patas que sempre o aguardavam no pátio com a alegria estampada no rabo abanando e nos saltos de saudade.
Para eles, o "Gauchinho", não era apenas um tutor — era um amigo dedicado, que entendia até os silêncios de seus bichos.
As mãos calejadas, marcadas pelo trabalho duro na lavoura e pelo volante de seu caminhão, ganhavam uma ternura especial na hora de cuidar da família.
Recebia das filhas as meias bem vestidas nos pés e a camisa passada com tanto esmero pela esposa, com o mesmo capricho com que alinhava os trilhos de um campo recém-arado, refletindo o amor que recebia delas, com a mesma dedicação e carinho.
Com um pente sempre no bolso, pronto para ajustar o cabelo e o bigode, ele carregava a elegância discreta de quem vive com simplicidade, mas nunca sem dignidade.
Sua figura impecável não era mera vaidade; era uma declaração silenciosa de respeito a si mesmo e aos outros.
Na pitoresca Vila do Povo Feliz, esse gaúcho de alma campeira deixou uma marca que o tempo não conseguiu apagar.
Nascido em Passo Fundo, no coração do Rio Grande do Sul, ele cresceu sob os valores sólidos da honestidade e da simplicidade, que mais tarde moldariam cada escolha de sua vida.
Quando dançava no salão com sua prenda, o entrelaçar de mãos era poesia viva, mostrando que a força de um homem também está na delicadeza de seus gestos.
No trabalho árduo da roça e nas aventuras ao volante de seu caminhão carregado de produtos e histórias, ele foi conquistando não só a vida, mas também os corações de todos ao seu redor.
Ajudando o pai desde guri, ele aprendeu a tirar leite das vacas com o mesmo afinco que mais tarde dedicaria ao arado, ao trator e ao transporte.
Seu caminhão, um velho companheiro de jornadas pelo Brasil afora, era conhecido em cada canto do município e um símbolo de sua determinação. Mais tarde, como chefe de obras do novo município de Flor da Serra do Sul, enfrentou desafios que intimidariam qualquer outro, mas não o Gauchinho.
Com máquinas precárias e uma equipe ainda verde, ele transformou o pouco que tinha em progresso visível, desenhando um futuro para a comunidade com a coragem de um líder nato.
Nas horas de folga, ele trocava o trator pelo jogo de bocha e os trabalhos da prefeitura pelas danças no CTG. Como vice-patrão, era inspiração para os jovens e orgulho para os antigos, um exemplo vivo de que tradição e modernidade podem caminhar lado a lado.
Vice-campeão brasileiro de trios na modalidade de bocha entre CTGs, campeão paranaense de trios também entre CTGs, vencedor do 1º Campeonato Municipal de Bocha e do 1º Campeonato Municipal de Suíço, além de conquistar inúmeros torneios regionais de bocha. Sem dúvida, Gauchinho foi um dos melhores jogadores da modalidade na região.
Assim era Gauchinho: um homem que, entre o campo e o salão, entre o trabalho e a diversão, construiu uma trajetória que ainda hoje ecoa como exemplo e saudade na memória de todos que tiveram o privilégio de conhecê-lo.
Com seu modo descontraído e uma alegria que parecia brotar do próprio coração da terra, ele deixou marcas profundas na história da Vila do Povo Feliz.
Era o tipo de gaúcho que falava com autenticidade, criando apelidos e soltando expressões que ecoam até hoje na memória de quem teve o privilégio de conhecê-lo.
“O sabugo vai pegar!”, “Vai pra Catuípe!” e “Vamos andar, vamos andar... para a bocha rolada quando se dirigia rumo ao bochim” não eram apenas frases; eram expressões de um jeito de viver, reflexos de sua personalidade vibrante.
Hoje, seu nome segue honrado pela Associação dos Funcionários Municipais e por uma rua que leva seu nome na cidade.
Ali, sua esposa ainda guarda com carinho as histórias e os valores de um tempo que, embora passado, continua presente no espírito da comunidade.
Seus filhos, herdeiros não só de sua propriedade, mas também de amor pela família, mantêm viva a tradição, investindo e cuidando com a mesma dedicação que ele demonstrou ao longo de sua vida.
Quem o conheceu não esquece a imagem do gaúcho conduzindo seu MB laranja, o Fusca 1994 ou o Versalhes pelas estradas da vila.
Na memória da minha filha mais velha, aquela cena do túmulo da família ainda permanece marcante: "Pai, quero ver o homem do cavalo," ela dizia, encantada, enquanto eu exercia o cargo de prefeito.
Era uma imagem que transmitia força, raízes e uma vida campeira que ele tanto amava. Acho que havia entre eles uma sinergia que só descobri ao escrever essa narrativa, pois ambos celebravam o aniversário no mesmo dia.
Na Vila do Povo Feliz, que naqueles tempos buscava construir sua identidade e sua independência, ele foi muito mais do que um simples homem; foi um exemplo de simplicidade, lealdade e amor ao próximo.
Mesmo com uma partida que veio cedo demais, seu legado segue inspirando novas gerações. Ele nos ensinou que a verdadeira grandeza não se mede pelo tamanho das conquistas, mas pela humildade de quem vive para servir e unir os outros ao seu redor. E assim, na memória do povo, ele vive, como um gaúcho eterno, símbolo de trabalho, alegria e coração.
Era um daqueles homens que não se encontram mais por aí, um tipo raro, moldado pela simplicidade e pela coragem do campo. Gente que não precisa de muito para viver, mas que deixa sua marca onde passa, como uma ferradura que se grava fundo na estrada de terra.
O Gauchinho, como todos o chamavam, era único, mas não pelo desejo de ser diferente. Era singular por ser exatamente o que era, sem tirar nem pôr.
No seu jeito campeiro e despojado, mandava “dinheiro por fax” e chamava a secretária obesa de “dona gorda”, sem malícia, mas com aquela franqueza que só o interior conhece.
Quanto às namoradas dos filhos, todas ganhavam o apelido de “jacua”, uma mistura de provocação e acolhimento que só ele sabia equilibrar.
Era nos domingos, no CTG, que o Gauchinho mais se mostrava. Entre uma partida de bocha ou canastra e um gole de cerveja, sua presença irradiava algo maior do que a própria sala: a alma do galpão.
Encostado no balcão, de bombacha bem posta e bigode sempre alinhado, olhava os amigos com olhos que pareciam enxergar além do presente.
E quando soltava a voz rouca e carregada de emoção para cantar os versos: “Na minha vida, dois morenos têm valor...”, o silêncio se fazia. Ali, cada nota trazia um pedaço da história que ele carregava no peito e entregava, de mão aberta, aos que quisessem ouvir.
Gauchinho era feito de memórias e gestos simples. Lembrava com risadas de suas aventuras pelas estradas do Brasil, dirigindo um caminhão e colhendo histórias como quem colhe milho. O mesmo milho que, vez ou outra, virava notícia no programa do Pereirinha.
E, ah, o Fusca! Aquela lata velha da Prefeitura, herdada do Município de Mameleiro, tinha uma história à parte. Quando algo o contrariava, ele simplesmente sacava o volante, que ficava só encaixado, e entregava ao companheiro de viagem, com um olhar desafiador. “Toma aí, agora te vira!”
Com os filhos, mantinha o coração aberto e a saudade à flor da pele. Ligava para os que estavam longe, lá pelos lados do litoral catarinense, em conversas tão amplas e cheias de risos que até o mais distraído no galpão criava imagem da família unida.
Gauchinho não precisava de palavras difíceis nem de feitos grandiosos. Sua vida era uma tapeçaria de momentos simples e ricos. De cada chimarrão compartilhado, cada história contada e cada abraço apertado, construía um legado que transcende o tempo: coragem, amor pela família e lealdade às raízes. Um homem que vivia para fazer da vida uma boa prosa ao pé do fogo.
Era um homem que rendia histórias como quem colhe os frutos maduros do pomar — com paciência, sabedoria e aquele jeito simples de quem conhece as lidas da vida.
Quem cruzava seu caminho jamais esquecia: sua visão única do mundo e suas atitudes, muitas vezes inusitadas, eram uma mistura de encanto e surpresa, deixando marcas profundas na memória de quem convivia com ele. Era considerado o melhor amigo do meu sogro, com quem compartilhava gostos, jeito de ser e o amor pela vida gaúcha e pelo jogo de bochas.
Lembro-me bem das tantas viagens no velho MB-Laranja, com a carroceria carregada de eucaliptos e um céu que parecia abençoar o trajeto.
Era tempo de gincana, um evento que mexia com toda a comunidade, organizado pelos jovens cheios de energia lá na entidade do Carijo.
Enquanto a poeira levantava na estrada de chão, o coração da gente se enchia de uma saudade boa, dessas que só quem viveu sabe sentir. Eram dias em que a coragem de inovar e a criatividade pulsavam no povo, impulsionando os primeiros passos de um Município que se iniciava.
Ao lado dele, as jornadas se transformavam em aventuras: fossem os deslocamentos até a capital do estado ou as tardes ensolaradas nos Jogos Abertos, onde ele brilhava como poucos.
Tinha uma precisão invejável no arremesso da bocha — bastava mirar o bochim e, quase sempre, era vitória certa para as nossas equipes. Não era apenas um atleta; era um símbolo da força e do talento que brotavam em nossa amada terra.
Falar sobre esse homem é como abrir um presente que a vida nos deu. É uma oportunidade de entrar no coração das coisas que realmente importam.
Há pessoas que nos fazem lembrar de onde viemos e nos ensinam, com sua própria trajetória, o valor de honrar aqueles que pavimentaram o caminho antes de nós.
Ele, sem dúvida, era uma dessas almas raras, e suas histórias ainda ecoam como lições, carregadas de um calor humano que não se esquece.
Não importa de onde viemos, o que realmente conta é o que fazemos enquanto estamos por aqui.
Esse gaúcho, com sua forma simples e firme de ser, deixou uma marca que não se apaga. Nós, que tivemos o privilégio de conhecer ele e sua família, temos a missão de manter vivos os valores das coisas boas, simples e justas.
É verdade que, muitas vezes, o preço a pagar por seguir o que herdamos pode ser alto, mas jamais nos trará vergonha.
A coerência não pertence aos faladores vazios, mas àqueles que falam e agem de acordo com o que acreditam. Os registros da história não mentem: cada ato, por mais modesto ou grandioso que seja, deixa seu rastro.
Lembremos, por exemplo, daquele homem de Nazaré, há mais de dois mil anos. Não deixou nenhuma construção, não escreveu uma palavra sequer, mas sua mensagem ainda ressoa forte, atraindo mais de 2 bilhões de seguidores ao redor do mundo. Não precisou de redes sociais, nem de palavras escritas, apenas viveu o que pregava.
Reviver a memória desse amigo é reviver o aroma do churrasco no campo, a imagem do cavalo bem selado, a sensação de uma camisa impecavelmente passada e o lenço vermelho no pescoço. É ter a certeza de que, se ele disse algo, pode ter certeza: será cumprido.
Paulo Roberto Savaris - 🙏 Um Sonhador, Caminhando com Francisco
(Apêndice Poético)
Rastro de um Gauchinho Eterno
🌾 Nas trilhas do campo, deixaste memória,
Com mãos calejadas, forjaste tua história.
O arado no chão, o caminhão na estrada,
Cada curva da vida, uma lenda formada.
🌟 No céu dos pampas, teu canto ficou,
"Dois morenos têm valor", teu verso ecoou.
Com bigode alinhado e olhar decidido,
Foste um homem simples, mas grande em sentido.
🚜 Trator e bocha, teu mundo campeiro,
Onde a lida e a festa se uniam no entrevero.
Na bombacha esticada, no lenço encarnado,
Carregavas o orgulho de um Rio Grande amado.
🛤️ O MB-Laranja, parceiro de jornada,
Cortava as estradas, a poeira levantada.
Entre eucaliptos e sonhos que carregavas,
Na simplicidade da vida, tua força mostravas.
🌌 Tua partida foi cedo, mas não em vão,
Deixaste valores plantados no chão.
Hoje, tua lembrança reluz na memória,
Gauchinho eterno, teu nome é história.
🎵 "Vai pra Catuípe!", teu grito chamava,
Na roda de amigos, a alegria reinava.
Com o coração aberto e os pés no chão,
Tuas lições guiam nossa geração.
🌺 Nossa Senhora dos Navegantes te abraçou,
No último trajeto, teu espírito levou.
Mas na Vila do Povo Feliz e em cada lugar,
Teu rastro de luz segue a nos guiar.
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